quarta-feira, 30 de julho de 2008

Solúvel

"... porque quando a gente cresce e lembra da infância, não lembra de tudo com clareza, sabe... lembra só dos momentos marcantes. Bons ou ruins. E tudo destorcido: se era bom, vira um “uaaal” e se era ruim, putz! Cresce feito bolo com muito fermento... vira horrível mesmo. E mesmo depois, quando as coisas acontecem quando já se é grande... a gente acaba só lembrando fácil de trechos de vida – os mais marcantes. Do resto, tem que fazer força pra lembrar. Pelo menos eu sou muito assim... e o que prende minha atenção – já disse uma amiga – são coisas que ninguém mais se importa, então um comentário que pros outros não tem relevância ou uma atitude que parece banal é o que acaba por me ferir a alma e sou muito, assumo, de remoer dores... antigas ou ressentes. Fico mesmo ressentida por essas peculiaridades da vida e coisinhas corriqueiras. E acho que pra muita gente também é assim, só que a maioria passa por cima porque aprendeu a ignorar as pequenas lesões não-físicas que os outros proporcionam, numa auto-defesa anestesiativa. Eu ainda não consigo. Acho que é por isso que hoje tento fazer diferente com a minha prima – que é quase irmã e quase filha – e com todo mundo sempre que possível. Não. Mentira. Com os outros eu raramente lembro disso. Mas com ela eu lembro... porque é criança e meu bibelô. Porque acho importante que ela tenha tudo o que não tive nesses quesitos sentimentais. Tudo o que não conseguiram me passar. Por isso que, hoje, evito brigar... deixo mesmo fazer do jeito que melhor lhe convém, mostrando as conseqüências e com autoridade de quem não grita nem repete ordem milhões de vezes. Cara séria é cara séria e ela raramente aparece. Gosto de ver que na maior parte do tempo ela sorri. Não quero, naquela memória infantil, ser referência de coisa chata e puro incômodo quando ela crescer e precisar de bases psicológicas sólidas. Alguém tem de se salvar nesse barco de loucos! Mas a minha sentença já cravada, então se eu posso fazer um pouco que seja pra que ela pule fora... eu faço, né!"

Ela abriu a porta do escritório com um sorriso na cara e de cabelo novo. E o máximo que ele conseguiu reparar foram os defeitos que ninguém mais via e que estava gorda. Assim... “na lata”, como dizem. Ela engoliu a seco e só desabou quando não agüentava mais e bem longe das vistas dele e sem ninguém entender exatamente o porquê. Dos poucos telefonemas que recebeu, só palavras ásperas e falta de educação.
De pai-herói à ignorante incompreensivo foi um pulo.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Agnóstico


Talvez fosse melhor ter pedido uma família naqueles anseios nunca antes inocentes de criança que nunca acreditou em papai Noel – nunca teve quem se empenhasse em fazê-la acreditar. Uma vez até tentou satisfazer um familiar deixando o tênis rosa na janela, mas também fez questão de ficar acordada pra ver o tal Noel chegar. Não deu. Acabou pegando no sono. Mas pouco importava, os brinquedos, em qualquer época do ano, vinham todos do mesmo lugar: da siderúrgica na qual o pai trabalhava. E disso sabia. Não se tinha historinhas pra esse tipo de coisa. Vinha da siderúrgica e ponto. Na época em que a siderúrgica ainda distribuía presentes pros filhos dos funcionários, porque depois... depois ela mesma ia escolher nas lojas de brinquedos e então não havia mais a necessidade de esperar um velho qualquer trazer ou não os presentes.
E cresceu assim... sem contos de fadas, sem saber andar de bicicleta, patins ou mesmo ralar os joelhos porque corria pela rua numa brincadeira qualquer. Nunca correu. Atrás de bola, ônibus ou sonhos. Talvez soubesse ser inútil tamanha façanha. Um dia até participou de um time de futebol na escola... e de um jogo! Um jogo que todos tinham medo de escalá-la e que pra ela era um martírio porque nem das regras sabia, muito menos o que fazer com tanta gente querendo a mesma bola. Pois então em mente a única coisa que lembrava das aulas: se a bola parar na sua frente, chute-a. E fez. Pareceram horas intermináveis aquele jogo. Tanto que prefere não lembrar. Mas as vezes não tem jeito. Todas as famílias de todos os jogadores estavam grudados à grade. Ela estava sozinha. Parava no meio do campo e olhava ao redor. Sozinha. O pai sempre se atrasava, mas nunca tanto. E quando chegou... primeiro se irritou por ela estar em campo.. o atrasando a vida. Depois..ah! Aquele olhar de decepção não dá pra esquecer mesmo. A única vez que chuta a bola pra dentro do campo é direto para a rede num gol contra. Desistiu. Depois dessa não dava nem pra continuar em campo...
Engraçado é lembrar a idade que tinha... era pequena.
Mas um dia aprendeu o significado das passagens de ano e que quando se pedia algo com muita vontade ali naquela transição de datas, com sorte e um pouco de fé – ou seria ao contrário? –, a coisa acontecia. Onde foi que perdeu essa fé? Porque pede o mesmo há anos! Não é possível... talvez seja então demais, ou o pedido errado. Mas tem pedido certo pra se fazer na virada do ano? Ela só queria ser feliz. Porque dói tanto quando...quando a sua mãe se recusa a apagar a luz do quarto pra você e você só tem seis anos e morre de medo do escuro, ou quando você tem pesadelos de madrugada e acorda assustada e cai da cama chorando e ninguém aparece pra te socorrer. Ou quando você tem dezenove anos, sente que nunca fez nada realmente significativo e a sua mãe é a pessoa de quem você mais tem rancor nessa vida...

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Descontente

O dia começa mal. Mal e tarde. Desconfortável. Com a vida, com o peso, com a cara, com o corpo – mais alto. Mais magro. Por que é tão complicado? É a primeira coisa que faz quando levanta: se olha no espelho e se insatisfaz. Desconfortável sensação. Olhar pro resto da casa ao abrir a porta do quarto e pensar em deixar tudo no seu devido lugar também o é. Alguém que chega tarde se desagrada da disposição de tudo e vê grande desordem em todo lugar. Desanima.
O programa da tv lhe trouxe medo: as dificuldades de viver na cidade grande. E justamente pra lá que precisa ir. É o que seu campo de trabalho pede. É a profissão que escolheu. Mas que campo? Que trabalho? Nem sabe ainda. E dá m medo...
E é tanta coisa... e como sempre tudo vem mais rápido que as ações, dedos e máquinas. E vem tudo assim em frases soltas; em assuntos que se emendam e angústias que só crescem.
A menina lá, a da tv, saiu de casa pra tentar levar a vida com as próprias pernas e tava lá a mãe ligando, chorando saudades. Isso não vai ter. Não é querer ser mártir, ésó que é fato: não tem esse vínculo familiar e já é tarde pra resgatar o que nunca foi. Não saberia.
E é profissão. E é coração. E é corpo. E é medo. E é solidão.
Tanta coisa que a tempos, sabe, precisa de um desconhecido pra falar.
Desses que são pagos pra te ouvir enquanto você destrincha suas mazelas emocionais.
Constatação 1: é de uma falta de estrutura completa: emocional, familiar e financeira.
Constatação 2: tudo dói em dobro porque só aprendeu a se abrir com estranhos e a chorar pra dentro.