domingo, 27 de março de 2011

Prontuário

A ponta da tesoura grande para tecidos passa débil e aleatória sob a pele fina fazendo o sangue brotar feito leito d‘água no alto verão do sertão... sem força, sem vontade, sem quase existir... só filetes finos que já logo vão secar. São 21 cortes no antebraço e 7 na palma da mão direita, mas nada que precise realmente de ponto ou de cuidados maiores. Na verdade, mais parecem arranhões bobos do que ferimentos sérios que mereçam atenção. Vai sarar logo, essa é que a verdade, e ninguém a chamará de suicida por isso; talvez de desesperada ou incompetente, mas suicida... não.

Fato é que a consideram covarde – ouviu isso por duas vezes no mesmo dia, e de pessoas bem distintas. Essa gente que não tem coragem, que foge pra não encarar. Essa gente que não quer ver nem ser o que se é preciso ser. Gente covarde... a chamaram assim. Não que ela ache que seja. São só os fatos. Ela acha mesmo é que ninguém nunca entendeu a sutileza de tudo. “Desde pequena a gente vem notando, neh doutor... ela entristecia, as vezes ficava muito calada..”. Então por que r ninguém fez nada?! Por quê!?! É só um grito seco e mudo na garganta... gritar pra quê? Gritar pra quem?

A tia relatou sua versão dos fatos ao médico – a única versão que conhecia porque cada um da família tinha a sua, mas guardava pra si esses assuntos velados – e ela novamente chorou em silêncio por se lembrar protagonista e testemunha ocular e não divergindo de tudo, mas sabendo que as coisas foram bem diferentes da forma como eram contadas ali naquele consultório alternativo com Shivas, incensos e Blues setentista transcendental tocando baixo. Ela lembrou. Chorou. E calou. Estava cansada de repetir a mesma história tantas vezes e, sinceramente, as memórias já começavam a se misturar. O que lembrava, da forma como lembrava, teria sido mesmo assim? Teria sido tudo exatamente daquele jeito? Era um questionamento em vão. Se havia memórias implantadas e irreais no que relatava, ninguém nunca iria saber. Nem ela. Principalmente ela, que tinha memória temporal confusa e sempre esteve sozinha nesses crimes, nesses acontecimentos banais a tantos outros olhos e que a dilaceravam de morte. Só ela viu. Só ela sentiu. Só ela corroeu a alma, sangrou por dentro e enlouqueceu de overbook. Simples assim. Aguentou o quanto pôde... até que não deu mais. Foi como encapsular os ataques em Nagasaki e Hiroshima e tomar com vodka. Boom!

Rápido assim. Como se não fosse um desastre anunciado. Como se não fosse eminente. Nada... eles só preferiram não ver.

Mas agora está aí: sangue parco seco, tremores, olhos inchados como ela nunca imaginou ser possível – tão inchados que mal a permitem enxergar – e uma incrível confusão mental que hora a sufoca com tantos pensamentos juntos e hora a consome num vazio que parece não ter fim. Ela dormiu por cansaço, e até tentou manter o controle no dia seguinte, mas se vestiu já com a mente em suspensão e perambulou pela rua sem meta... não sabe onde, sem saber porquê ou por quanto tempo... em passos curtos, vagos e ébrios. E fez pouso no espaço pouco íntimo, mas já conhecido. E se sentiu pior que antes pela incapacidade... só queria sumir. Sumir dali. Sumir de todos. Sumir de si. Mas ficou. Feito gato novo de rua maltratado, acuado e faminto que tem olhos de fome, piedade e atenção. Ficou até que todos aparecessem atordoados pela sua não-presença e lhe dessem um pouco daquilo que sempre lhe faltou: abraço apertado, olhar firme de que “vai ficar tudo bem”, olho no olho, carinho... atenção. Ficou ali até eles chegarem. E eles chegaram. E a levaram dali. E ela foi. Meio amparada, meio com as próprias pernas. E tá aí: os médicos a classificam como um típico CID10 F33:3. Diz-se “depressivo-psicótico”.

A enviaram pra longe pra que ela “se distanciasse um pouco disso tudo” enquanto se reúnem em távolas e discutem seu futuro. Ao pé que está, dizem a ela que é melhor puxar a alavanca de emergência desse trem-bala descarrilhado que se tornou seu mundo e descer na parada mais próxima; ao menos por um tempo. Mas veja bem, ao pé que está só ela parece poder tomar essa decisão e, convenhamos, é difícil abrir mão das possibilidades de oportunidades profissionais, do engajamento em estágio fraldário na faculdade, das poucas pessoas que ainda importam e do que ainda não está tão ruim assim que seja irremediável. Mesmo que a sua sanidade esteja em jogo.

Até aqui, já foram quatro entre psicólogos, psicanalistas, psiquiatras e psicoterapeutas. Três só este mês. Ela teve um overbook. Eles a classificaram como um CID10 F33:3 – um sigla; um termo médico pra não explicitar que ela enlouqueceu. Nem a deixam mais andar sozinha por aí. E enquanto nada se resolve, Equilid e Lexotan... só pra anestesiar.

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